Lei Maria da Penha e Crimes Sexuais

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A palavra da vítima nos crimes contra a dignidade sexual

Uma análise do HC nº 79.850-1/STF

   Processo Penal Brasileiro

   No Brasil, qualquer pessoa acusada de cometer determinado crime tem o direito de se defender, através de todo e qualquer meio de prova, e de ser julgado com imparcialidade. Visando evitar injustiças e arbitrariedades estatais, nosso sistema processual penal tem baliza em diversos princípios constitucionais, sendo os principais: princípio da presunção de inocência, da ampla defesa, do contraditório, do juiz natural, da imparcialidade do juiz, da igualdade processual, dentre outros.

 Tais princípios garantem ao acusado o direito de ser ouvido, de se defender, de participar de todos os atos processuais, de questionar provas, solicitar novas perícias e, acima de tudo, de ser considerado inocente até que haja o trânsito em julgado – quando exaurem-se todos os recursos ( CF/88, artigo. 5, inciso LVII).

 Como todo acusado é presumidamente inocente, cabe ao aparato acusatório estatal o ônus da produção de provas, ou seja, não é o acusado que tem que provar sua inocência, é o Ministério Público que tem que provar a ocorrência do ilícito penal. O Supremo Tribunal Federal já se posicionou sobre o tema no Habeas Corpus de Nº 73338/RJ que teve como relator o Min. Celso de Melo, proferindo o seguinte entendimento:

“Nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete ao réu demonstrar sua inocência, cabe ao Ministério Público comprovar, de forma inequívoca, a culpabilidade do acusado”.

 Ao fim da instrução penal, não existindo provas suficientes de autoria e materialidade, o acusado deve ser absolvido. É o que determina o art. 386VIICPP:

Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça:

VII – não existir prova suficiente para a condenação.

    CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL

 Os principais crimes cometidos contra a dignidade sexual estão tipificados no próprio código penal (também estão previstos no ECA alguns crimes que atingem abstratamente a dignidade sexual de menores), art. 213 e seguintes, sendo os mais comuns: estupro, violação sexual mediante fraude, assédio sexual e estupro de vulnerável.

 A ampla maioria desses crimes, independentemente do sexo, da idade ou da relação entre vítima e acusado, são cometidos na clandestinidade, às escondidas. Quando deixam rastros, é imperioso que seja feito o exame de corpo de delito. Realizado em unidade do IML – geralmente próximo à delegacia -, o supra exame analisa alterações nas mamas, genitais externos, hímen, vagina, colo uterino, e a partir dessa análise é possível saber se a vítima já praticou conjunção carnal ou outro ato libidinoso, quando praticou, se houver rompimento do hímen, se sim, se a cicatrização é recente, se houve lesão corporal, etc.

    E QUANDO NÃO HÁ RASTROS?

 Como já dito, por serem crimes tradicionalmente cometidos de maneira clandestina, escondida, sem qualquer testemunha, a dificuldade de produzir provas é bem maior, especialmente em situações nas quais o abuso se dê por ato diverso da conjunção carnal. Pensemos numa mulher apalpada num ônibus ou metrô, ou uma criança que tenha suas genitálias apalpadas por um tio. Não havendo gravações ou testemunhas, muitas vezes sobram apenas a palavra da vítima.

 Em virtude da disparada de casos e da dificuldade em responsabilizá-los, os tribunais superiores discutiram o tema e formaram jurisprudência no aspecto de hiper valorar a palavra da vítima desde que compatível com os demais elementos do processo. Sempre que há argumentação nesse aspecto, como uma súmula, suscita-se o HC do STF nº 79.850-1:

Nos crimes sexuais, a palavra da vítima, quando em harmonia com os demais elementos de certeza dos autos, reveste-se de valor probante e autoriza a conclusão quanto à autoria e às circunstâncias do crime.

   Por um lado, não dar importância a palavra da vítima seria um disparate, um verdadeiro estímulo à impunidade, por outro, presumir-se como verdade tudo o que por ela é dito, além de uma afronta ao garantismo, ao Processo Penal e a própria Constituição Federal, abriria campo para graves injustiças decorrentes de falsas acusações. Por isso, a mesma decisão que deu especial valor à palavra da vítima, a impôs um limite: poder ser considerada como prova desde que compatível com os demais elementos dos autos.

 Bom, se na teoria houve uma compensação, na prática não pode-se dizer o mesmo. Quais são os elementos a serem analisados numa denúncia de um abuso que ocorreu dentro de um quarto, sem qualquer testemunha ou registro? Se não há qualquer elemento, como deve ser analisada a “compatibilidade” da acusação? Na prática, tomando conhecimento do fato, Delegados estão indiciando independentemente de resultado pericial e o Ministério Público montando robustas denúncias pautadas única e exclusivamente na palavra das vítimas, cabendo a defesa, numa nítida inversão do ônus da prova, apontar fragilidades e inconsistências na acusação.

 É certo que se não fosse por essa adaptação da regra do jogo, muitos abusadores que hoje encontram-se presos estariam em liberdade, causando dor em outras vítimas e famílias. Uma grande vantagem, porém, com um alto custo, a prisão e destruição de reputações intocáveis de homens íntegros e inocentes. Até onde uma mulher traída é capaz de ir? Quais os limites de uma vingança? O que acontece se uma criança é orientada pela mãe a dizer que fulano a mostrou o “pipi”?

 Embora absolutamente reprovável, sabemos que de fato não são raros abusos cometidos dentro da própria casa, por um algum parente ou pessoa de confiança da família. Porém, infelizmente, também sabemos que a cretinice não escolhe sexo ou idade e que cretinos – talvez sem ter a real dimensão da consequência dos seus atos – aproveitam-se de brechas para obterem qualquer vantagem, ou meramente com o intuito de vingança: “vou acabar com a vida dele”.

 O polígrafo, vulgarmente conhecido como detector de mentiras, usado em diversos países, talvez seja uma das soluções mais promissoras e imediatas para o presente dilema. É certo que o Estado não poderia obrigar o acusado a realiza-lo, ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo, mas a defesa poderia pedir, como qualquer outra diligência, que o acusador ou até mesmo o acusado, voluntariamente, se submetessem ao aparelho. No momento existem dois projetos de leis que propõe o uso do polígrafo na justiça brasileira: o PL 1654/15 de autoria do ex-deputado e atual prefeito Manoel Júnior (MDB), e o PL 1638/19 de autoria do deputado federal Delegado Waldir (PSL).

 Porém, apesar de ser uma ferramenta utilizada em diversos países, inclusive em tribunais, a ideia enfrenta certa resistência no Brasil, inclusive de grandes doutrinadores, como Aury Lopes Jr. Como esse não é o escopo do texto, deixo aqui o link para quem deseja ver os argumentos contrários ao polígrafo no processo penal brasileiro:

https://emporiododireito.com.br/leitura/impossibilidade-do-uso-do-poligrafo-no-processo-penal-brasil…

 Para a sociedade civil, talvez o fim (vários abusadores presos) justifiquem os meios (muitos inocentes presos), mas só até o momento em que a acusação é contra si próprio ou contra aquele parente que você “tem certeza que jamais faria isso”. No processo penal, quando colocamos rostos no lugar de números, fica claro que os meios não podem justificar os fins.

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